Alice, Alicinha, Anna e José (mãe e "padrinhos")
Vou passear por um caminho árduo e espinhoso e
se é assim, posso até ser ferida, mas vamos lá.
As cotas para negros. Sou negra, tenho mais
de 50 anos, não enriqueci, aliás estou
longe disso, mas tenho minha profissão, que exerço, às vezes, aos trancos e
barrancos, ou seja com alguma dificuldade. Mas é dela que vem o meu sustento.
Já fui constrangida inúmeras vezes nesta vida.
Quer coisa pior que negro procurar emprego especialmente em cidade grande?
Foram tantos os nãos.
Quem estava lá para fazer a seleção, é claro
que nunca dizia que o motivo da não escolha fosse a cor da pele ou o morar
longe, por exemplo. Mas no fundo, quem passa por isso sempre sabe o que está
acontecendo. Ficava abatida, às vezes
até derrotada, mas não tinha jeito, precisava prosseguir.
Naquele tempo não tinha quem o ou que me
defendesse, leis, constituição, ongs ou seja lá o que fosse. Era eu, a minha
pele e aqueles que não me aceitavam para ocupar um simples cargo de auxiliar de
escritório em “sua”
empresa.
Lembro que uma certa vez, trabalhava em uma
metalúrgica, na parte administrativa e estava
aprendendo as primeiras lições da contabilidade, fazendo os lançamentos de
débito e crédito, quando cheguei no
escritório e falei pro senhor que me ensinava, um contador antigo, daqueles de
letra bonita, que tinha um livro contábil impecável, que havia passado no
vestibular, ele ficou indignado. E disse na minha cara que faculdade não era
para mim e que deveria me contentar com a função de auxiliar de escritório.
Tinha lá eu 22 anos. Recebi a pancada, mas
não fui a nocaute. Sobrevivi e com enormes sacrifício consegui me matricular.
Se eu contei pra alguém?
Lógico que não. Não tinha pra quem contar.
Era a primeira na família a dar um passo para ingressar no ensino superior e ia
levar uma coisa dessa pra casa. Ai, além de mim, minha mãe certamente, também
ficaria arrasada.
Mas nada disso é novidade para pessoas que
tiveram que derrubar barreiras sozinhas e na marra como eu.
Hoje o assunto é o ministro Joaquim Barbosa,
quando a mãe dele mesmo declarou que precisou lutar muito para vencer sozinho.
Se esperássemos por cota, certamente estaríamos
enterrados no começo de tudo.
Meu medo é que as pessoas se acomodem com as
cotas e não lutem para conquistar o seu lugar ao sol.
Cotas nas universidades. Estas já são reais.
E o que se pretende agora cotas para emprego
público.
Imagina eu, nessa altura do campeonato ser
abordada por um colega ou por um contribuinte, apontado que eu só estou no
serviço público porque fui protegida por uma cota para negros.
Não, não mesmo. Eu não gostaria disso. Sou funcionária
pública sim. Mas uma coisa eu me orgulho, fui aprovada em primeiro lugar,
independente de qualquer coisa. E não há nada melhor na vida do que ver o fruto
do seu trabalho e do seu esforço.
Universidade é para um tempo da vida.
Trabalho é para o tempo que nos resta e às vezes é muito tempo para carregar mais
um estigma.